sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Beato Salu, Um quase Conto de Natal


A manhã esteve escura e gélida, como se querem algumas manhãs de dezembro. Ele ali está, finalmente!
Há uns dias que não me cruzava com ele e já estava com saudade do seu aceno cordial. Dias há em que o cumprimento é furtado à insistência. Não, que ele não seja amável, para quem lhe dirige um sorriso ou um bom dia, e sim, quem sabe, por me confundir com uma qualquer turista. Há uma semana que não o via e estava a ficar preocupada. Há sete meses que o encontro, quase diariamente. Hoje foi ele quem se antecipou ao cumprimento, sinal que me reconheceu ao primeiro olhar,  por isso mesmo, por fazer dos meus dias de trabalho, ou dos meus passeios citadinos, dias diferentes e mais acolhedores, devo-lhe um Conto de Natal.

Passei alguns anos longe das pedras e das paredes históricas, dos bancos e das praças, das ruelas e travessas da cidade Património da UNESCO. Quando regressei, assim que lhe pus os olhos em cima, foi como se nunca me tivesse afastado. Aos meus olhos continuava tudo igual, o Beato deambulava pelo centro histórico como quem parou no tempo, fazendo com que a cidade, também ela estivesse parada no tempo.

Os dias e os meses passaram e eu passei a ver o Beato e a cidade de uma outra maneira. Continua a ser uma figura emblemática, continua a atrair os olhares e os flashes dos turistas, continua a ter uma página no Facebook, a ser motivo de noticia, mas alguma coisa mudou, desde então!...
Talvez tenha sido eu quem mudou, talvez tenhamos sido os dois que mudámos, ou quem sabe sejam as gentes que estão a mudar…

Recordo com uma certa nostalgia o Luís Martins, o nosso Beato, o Beato da cidade, das crianças e dos amigos.  Revivo os passeios pela Praça do Giraldo, as festas, os comícios, os encontros. O Beato lá estava rodeado de gente. Sentado no parapeito da fonte ou num banco da praça, todos pareciam querer escutar o que tinha para dizer. Atualmente quando passo por ele encontro-o quase sempre sozinho, umas vezes lê o seu jornal, mas a maioria das vezes os seus olhos passeiam pelos transeuntes, a sua expressão é de alheamento e muitas vezes conversa... Acho que ele conversa com as pedras das calçadas, com a história da cidade ou com os amigos do passado, (uns metros mais à frente, encontram-se varias pessoas sentadas num parapeito, de olhos postos nos telemóveis). A seu lado, no banco onde se senta não se encontra mais ninguém. Nessas alturas sou tentada a abrandar o passo; o que será que o filósofo tem para dizer ao mundo se ninguém parece querer, escutar. De vez em quando há uma criança que corre para ele, nessas alturas os seus olhos brilham de contentamento e eu dou por mim a sorrir.

Os estudantes também gostavam de conversar com o Beato, mas até os estudantes de hoje andam tão apressados… Os amigos envelheceram e os novos amigos deixaram de ter tempo. Por isso ao Beato resta conversar consigo mesmo e eu quase que adivinho a sua conversa. Certamente relembra a sua missão, a de salvar Évora de demónios e fantasmas, ou fala da sua viagem a Fátima e da revelação que o fez abdicar do mundo, para se dedicar inteiramente ao quotidiano da sua cidade. Pode também falar do rodopio no Largo de Camões, nas lojas apinhadas de gente, nesta quadra, da iluminação de Natal ou do frio e do sol matinal. O Beato pode falar de tantas coisas e tantas coisas que se aprende com o Beato se se aprender a escutar.

O Beato Salu veste as mesmas roupas surradas que vestia no início do verão, calça os mesmo sapatos e puxa pelo mesmo trolley de viagem. O Beato está mais sozinho do que nunca. Passo todos os dias por ele e todos os dias lhe agradeço por fazer parte da história da minha cidade.

O Natal está aí e o Beato envelheceu. O frio vem aí e não é bom companheiro. Quando regressei perguntei a amigos onde dormia o Beato, tinha uma casa de onde foi despejado, responderam que costuma dormir num banco do largo da Camara Municipal.

Não sei se só lá dormia no verão e se agora já não dorme. Se com a chegada do inverno tem um teto que o acolha. Não sei… mas acho que a cidade deveria querer saber… que a cidade lhe deve isso, por achar que um dia a cidade não quer ler a noticia… “O Beato envelheceu e morreu de frio, num qualquer banco, seu amigo,” num qualquer inverno em que algumas manhãs de dezembro se querem escuras e frias.

Antónia Ruivo, 13 de Dezembro de 2018.

Fotografia: Maria Dulce Caiola




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